António Mateus Médico Ortopedista

Tratamento do Conflito Femoroacetabular da Anca

 
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O Conflito Femoroacetabular (CFA) é um conceito relativamente novo (1º artigo sobre o assunto publicado em 1986 por Ganz) e explica o aparecimento de artrose nos indivíduos jovens, entre os 20 e os 50 anos de idade.
 
O CFA É UM CONTACTO ANORMAL ENTRE A CABEÇA DO FÉMUR E O ACETÁBULO, que causa dor, desconforto, mobilidade limitada, lesão do labrum, degeneração da cartilagem articular que leva a artrose da anca (osteoartrite). 
 
No CFA há alterações morfológicas femorais e/ou acetabulares (alterações da forma, da configuração) que criam um problema de espaço, levam à desorganização da articulação e à consequente artrose da anca. 
 


O CFA É A CAUSA DE DOR NA ANCA MAIS FREQUENTE NOS ADULTOS JOVENS, nomeadamente nos desportistas (bailarinos, praticantes de artes marciais, futebolistas, corredores, etc.). 
 
Cerca de 15% das pessoas da população geral têm deformidade da anca e podem vir a sofrer de CFA.

O CFA é mais frequente em adultos jovens (20 a 50 anos) de ambos os sexos, muitas vezes desportistas. 
 


O paciente queixa-se de dor na anca (região inguinal, região do grande trocânter, região nadegueira, na coxa ou no joelho, dor em “C”) viva ou surda, intermitente, com evolução de meses ou anos, com duração de minutos a horas, sensação de apreensão ou desconforto na anca, a dor ou o desconforto aparece ou agrava-se ao efectuar actividades que requerem movimento de flexão-adução-rotação interna, após flexão mais ou menos ampla e prolongada (sentar com a perna cruzada, etc), ou na deflexão (ao levantar após período de sentado), a dor pode ter início após pequeno trauma ou após actividades desportivas, há história de bloqueios ou pseudobloqueios da anca (ficar preso da anca). 
O diagnóstico é feito com base no exame clínico realizado pelo médico e nos exames complementares de diagnóstico (exames imagiológicos: Rx, RMN, outros). 
 
No exame físico há limitação das mobilidades da anca, particularmente na rotação interna e na adução com a anca em flexão. 
 
O teste do conflito é positivo (dor na anca despertada com a compressão em rotação interna e adução ou em hiperextensão e rotação externa). 
 


Nos Rx há alterações morfológicas ósseas da transição da cabeça-colo do fémur e/ou do acetábulo. 
 
Na Ressonância Magnética Nuclear (RMN) há lesão do labrum ou da cartilagem (o labro é uma espécie de anel fibroso que circunda o rebordo acetabular e serve de vedante do líquido articular).

Os exames a realizar são os RX, a RMN, a TAC e a artroscopia
 
 
RX:
Rx da bacia, face correcta (incidências correctas). 
 
 
Rx de face das ancas em posição ortostática (em pé) em rotação neutra e em rotação externa de 30 graus.
 
 
Rx de perfil das ancas (axial de Dunn, crosstable, falso perfil). 

 
 
Rx da coluna lombosagrada (para despiste de patologia causadora de dor idêntica à da anca). 
 
Nos Rx da bacia pode-se estudar o grau de inclinação anterior ou posterior da bacia, pode-se observar a bossa (deformidade, giba) na junção do colo com a cabeça femoral, e observar se há excesso de cobertura acetabular (excesso de osso no rebordo acetabular). 
 
 
Nos Rx das ancas pode-se avaliar se os rebordos acetabulares são normais ou se há excesso de cobertura (se há osso a mais) na região anterosuperior do acetábulo, pode-se ver melhor a deformidade (giba, bossa) da junção cabeça-colo que geralmente é anterolateral, avaliar a perda de esfericidade da cabeça, avaliar onde e a quantidade de osso a retirar quer do fémur quer do acetábulo, durante a cirurgia (operação). 
 
 
RMN - Ressonância Magnética Nuclear
A RMN dá-nos o diagnóstico diferencial com outras doenças (necrose avascular, artrite, etc.).
A RMN com artro (ressonância magnética com contraste) confirma as deformidades ósseas encontradas nos RX e identifica as lesões do labrum (roturas, fissuras, quistos, etc) e as lesões da cartilagem (delaminação, plicatura, etc). 
 
A RMN é um exame indispensável para o diagnóstico de todo o tipo de lesões do CFA e para auxiliar o médico na tomada de decisão do tratamento a realizar. 
 
 
A TAC (Tomografia Axial Computorizada) realiza-se nos casos mais complexos e secundários a lesões traumáticas. 

 
A Artroscopia da anca faz-se nos casos em que persistem dúvidas no diagnóstico de CFA e após realização dos exames imagiológicos.
Morfotipos ou tipos de alterações, de deformidades ósseas encontradas em cada um deles.




No tipo A

Não há alterações na morfologia da anca (nos exames imagiológicos a anca é normal), mas devido à sobresolicitação por movimentos muito amplos e de repetição exagerada (para além do normal, em graus suprafisiológicos de flexão) pode haver sintomatologia de CFA (bailarinas, artes marciais, etc).




No tipo B
, tipo “Pincer”
Há excesso de cobertura acetabular (excesso de osso no rebordo do acetábulo) que pode ser parcial ou total.
A região de união da cabeça com o colo femoral vai batendo no rebordo ósseo em excesso do acetábulo nos movimentos repetidos de flexão da anca, há indentação no colo e vai magoando (deteriorando) sobretudo o labrum e mais tarde quando há lesão da cartilagem inicia-se o processo de desenvolvimento da artrose da anca.

As lesões iniciam-se no labrum, macerando e podendo dar fissura, rotura ou destacamento.

É mais frequente no sexo feminino, tem evolução mais lenta e tem melhor prognóstico.




No tipo C
, tipo “CAM”
Há deformidade (bossa, giba) na região anterolateral da junção cabe-colo do fémur, a cabeça femoral não é esférica, a bossa vai forçando a entrada no acetábulo com os movimentos repetidos de flexão/extensão da anca, e vai inicialmente magoar e deteriorar a cartilagem do tecto acetabular, e iniciar o processo de artrose.

As lesões do labrum acontecem posteriormente.



É mais frequente no sexo masculino, evoluiu mais rapidamente para a deterioração da articulação e tem pior prognóstico.




No tipo D
, tipo combinado
Estão associados todos os sinais e sintomas, e todas as características dos tipos “pincer” e “CAM”.

Geralmente o tempo de intervalo entre o aparecimento dos sintomas e o diagnóstico é longo, dando lugar a um tratamento médico habitualmente ineficaz (medicação, fisioterapia, etc.) e alguns dos pacientes já foram operados a outras patologias (hérnias, pubalgia, etc.), porque o diagnóstico de CFA não foi feito atempadamente. 
 
O tratamento é cirúrgico.

Com o tratamento cirúrgico reparam-se as lesões do labrum e da cartilagem e removem-se as dismorfias ósseas.

A dismorfia anterolateral (bossa) da junção cabeça-colo, tipo “CAM”, é tratada removendo o osso em excesso (femoroplastia), permitindo o restabelecimento da esfericidade da cabeça do fémur e da concavidade normal da junção cabeça-colo.

Na sobrecobertura acetabular, tipo “pincer”, resseca-se o rebordo acetabular em excesso e reinsere-se o labrum após ter sido regularizado.



As lesões do labrum (fissura, rotura, desinserção) são tratadas por regularização, resseção ou reinserção.
As lesões da cartilagem são tratadas por regularização, excisão, reinserção ou microfracturas, dependendo da dimensão e das suas características.

O tratamento cirúrgico só está indicado quando houver dor e limitação na articulação da anca.
As alterações morfológicas, só por si, não justificam o tratamento cirúrgico.

O objectivo do tratamento cirúrgico é aliviar a dor, melhorar a mobilidade e evitar a progressão das alterações da articulação da anca no desenvolvimento da artrose. 
 
Há três técnicas cirúrgicas (tipos de operação) utilizadas no tratamento do CFA.
A chamada técnica mista de Ribas, a artroscopia e a cirurgia aberta com luxação segura.


Técnica mista de Ribas
É feita uma abordagem anterior mini-invasiva complementada por artroscopia. A cirurgia é realizada sob visão directa, as pequenas lesões e o controlo da sua correção é feito com visualização do artroscópio. 

Actualmente muito utilizada, incisão de 4 a 6 cm, abordagem anatómica (intermuscular, sem seccionar músculos) permite tratar todas as lesões, permite uma exploração completa da articulação com exame dinâmico, a recuperação é rápida e deixa uma pequena cicatriz.




Artroscopia 
São feitas pequenas várias incisões para introdução do artroscópio e dos instrumentos de trabalho, os gestos cirúrgicos são controlados por visão em monitor.

É uma alternativa actual à cirurgia aberta, está em desenvolvimento, é indicada nas deformidades mais simples, não tem os inconvenientes da cirurgia aberta, no início a recuperação é mais rápida, é muito dependente do cirurgião, é bastante demorada, há dificuldade no tratamento de todo o tipo de lesões, as resseções ósseas são por vezes inadequadas.




A técnica aberta com luxação segura (técnica de Ganz)
Foi a técnica inicialmente utilizada no tratamento do CFA, é actualmente pouco utilizada, é cirurgicamente mais agressiva, é
reservada para as situações mais complexas e que exigem grande exposição da articulação da anca.
As complicações no tratamento cirúrgico do CFA são raras mas podem acontecer e as mais frequentes são a lesão na coxa do nervo femorocutâneo lateral, a infecção, o tromboembolismo e a ossificação heterotópica.

Podem acontecer outras complicações ainda mais raras como a necrose avascular da cabeça do fémur, a rigidez articular, a luxação, etc.

Para prevenir a lesão do nervo as incisões afastam-se o mais possível do trajecto do nervo, para prevenir a infecção é feita a aplicação de antibiótico profiláctico, para prevenir a troboembolia é aplicado medicamento adequado bem como para prevenir o aparecimento da ossificação heterotópica.
Os resultados do tratamento cirúrgico do CFA são bons, mas a operação deverá ser realizada nos estadios inicais da doença, ou seja enquanto não houver deterioração mais acentuada da articulação (Tönnis 0 e 1).

Nos estádios mais avançados, quando as alterações já são mais graves (Tönnis 2) os resultados são menos bons.
A recuperação é relativamente simples e tem bons resultados.

Inicia-se logo após a cirurgia podendo o paciente andar com canadianas, fazer carga total no membro operado, sendo-lhe permitidos todos os movimentos da anca com limites para a flexão que não deverá passar além dos 90 graus e para a extensão que não passe os zero graus. Deverá, no início, haver moderação nos outros movimentos da anca.

No domicílio o paciente deverá mobilizar a anca, deverá tomar a medicação prescrita não esquecendo a medicação da profilaxia do tromboembolismo e da profilaxia do aparecimento das ossificações heterotópicas.
O penso será mudado só se necessário e os pontos serão retirados aos 8-10 dias. 
 
A fisioterapia de recuperação funcional deverá iniciar-se logo após a cirurgia e segundo programa adequado à recuperação desta patologia.

Ao fim de 2 meses a generalidade dos pacientes estará completamente recuperada e os atletas, se seguirem com rigor o plano de recuperação, estarão aptos a regressar à competição ao fim de 3 meses.
O seguimento futuro será o estritamente necessário no acompanhamento da cicatrização da ferida operatória e no seguimento da recuperação funcional.

Futuramente serão realizados exames de controlo de regressão das deformidades e de vigilância da doença.
Que o tratamento do Conflito Femoroacetabular da anca possa atrasar ou evitar o desenvolvimento da artrose, é uma pergunta que num futuro que se crê próximo poderá ser respondida, no entanto tudo leva a crer que sim.
Os mais fundamentalistas desta técnica afirmam peremptóriamente que sim. 
 
NOTA:
As considerações relacionadas com os item não focados neste capítulo do CFA, são semelhantes às referidas na Artroplastia Total da Anca (PTA).